Brasil Abaixo de Zero - Trecho 1

O brasileiro Hélio esquia. Sim, ele esquia no Brasil.
Na falta de neve de um país tropical, esquia na grama.
Ou no asfalto, o que deve ser o calor do inferno na terra.
Quando convocado para representar o país em provas preparatórias para as Olimpíadas, viajou para o exterior com despesas pagas pela Confederação Brasileira.
Foi o suficiente para atiçar as línguas mais ferinas:
– Cuspe à distância. Quem sabe eu sou o melhor do Brasil, aí também posso tirar uma folga pra viajar de graça.
Naturalmente, o combustível de muitos é a inveja, pois quem não gostaria de estar em situação semelhante?
Quando Luciana viu, pela primeira vez, Hélio treinando no canteiro da avenida mais movimentada da cidade, em pleno horário de rush, soltou a seguinte observação, com uma expressão entre divertida e irônica: “Eu voltando para casa, a Norte-Sul meio congestionada, e vejo um ser estranho no meio do canteiro com uns bastões, eu olho direito e adivinha quem é, é o Hélio.” Pelo menos ela não gritou “Quer aparecer? Pendura uma melancia na cabeça!”, ou “Maluco! No Brasil não tem neve!”, como ele diz já ter acontecido muitas vezes.
A situação seria constrangedora para muitos, mas para Hélio, que é extremamente introvertido e faz de tudo para passar despercebido e evitar maledicências em outras circunstâncias, deve ser uma via-crúcis.
Quem realmente o conhece se questiona sobre como é possível que ele pegue o par de esquis, as botinhas apropriadas – ele chegou a precisar usar pés de cores diferentes quando um deles quebrou, o que deve ter tornado a cena ainda mais insólita – e os bastões, e vá treinar assim fantasiado num local movimentado, com manés gritando impropérios de dentro dos carros que transitam nas pistas de ambos os lados do canteiro.
Só mesmo com uma fissura muito forte pelo esporte.
A recompensa pela dedicação de Hélio veio com um inesperado reconhecimento em fevereiro de 2005, quando participou do Campeonato Mundial de Esqui Nórdico realizado em Oberstdorf, na Alemanha. Já habituado, tanto aos comentários venenosos, quanto às brincadeiras mais inofensivas dos conhecidos, foi surpreendido com o assédio de jornalistas e fãs recém adquiridos.
Foi a sensação da mídia, que o chamou de “darling of the public”, relatando que “o brasileiro conquistou o coração dos espectadores”. Na prova de 15 km, apareceu mais tempo na transmissão da televisão que os medalhistas e demais atletas profissionais. No Brasil, ganhou destaque no caderno de esportes da Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Brasiliense e Zero Hora, além de outros jornais de menor circulação.
Seu grande atrativo não é sua técnica, sua habilidade com os esquis, mas o exotismo de um atleta oriundo de país tropical que se dedica a um esporte praticado na neve, raridade no Brasil, e que ele próprio só veio a conhecer em 2002, já com mais de trinta anos de idade. Ao contrário dos grandes esquiadores, já nascidos e criados na neve, Hélio teve de aprender a se equilibrar sobre os esquis depois de “velho”, e a se contentar com o asfalto ou a grama passando por neve.
Cus D’Amato, treinador de pugilistas como o antigo campeão mundial Floyd Patterson, costumava dizer que garra valia tanto ou mais do que músculos.
Talvez o mundo ainda seja um lugar romântico, e a enorme cobertura recebida por um esquiador com habilidades medianas, em uma competição onde disputam os melhores do mundo, reflita o que os telespectadores ainda esperam para si mesmos: a superação de obstáculos e a dedicação a sonhos que parecem vãos, quando não estapafúrdios ou, pelo menos, muito remotos.





<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?